O Grito/Edward Munch
Em silêncio, corre nos escaninhos da Câmara um projeto de decreto legislativo que anula a resolução baixada pelo TSE em 25 de outubro, para regular os processos de perda de mandato dos políticos infiéis. Se aprovada, a proposta vai transformar em pó as 1.773 ações já ajuizadas pelos partidos políticos, para tentar reaver os mandatos de políticos que pularam a cerca, transferindo-se para outras legendas.

O decreto redentor é de autoria do deputado Regis de Oliveira (PSC-SP). Foi apresentado em 2 de novembro. Leva o número 397/2007. É curto e grosso. Tem apenas dois artigos. O primeiro anota que “fica sustada a aplicação da resolução 22.610 [...], do Tribunal Superior Eleitoral, que disciplina a perda de cargo eletivo [...]”. O segundo reza que o decreto “entra em vigor na data de sua publicação.”

O projeto de Regis de Oliveira tramita em regime de “prioridade”. No intervalo de 23 dias, foi protocolado na Mesa diretora, publicado no Diário da Câmara e enviado à comissão de Justiça. Chegou na comissão em 27 de novembro. No dia seguinte (28), nomeou-se o deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), para relatar a peça. Decorridas menos de 24 horas, o relatório já havia sido apresentado à comissão. Deu-se há três dias, em 29 de novembro.

O texto de Itagiba, agora pronto para ser inserido na pauta de votações da comissão de Justiça, anota: [...] Manifestamo-nos pela constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa, e, no mérito, pela aprovação do projeto de decreto legislativo.” Se o parecer for aprovado pela maioria dos integrantes da comissão, algo provável, a proposta vai ao plenário da Câmara.

Para justificar a anulação dos efeitos da resolução do TSE, Regis Oliveira argumenta que o documento do tribunal “invade a competência do Poder Legislativo”. Afirma que a resolução “usurpa atribuições” do Legislativo, a quem cabe, “privativamente, legislar sobre direito processual eleitoral.”

Como se recorda, o TSE só baixou a resolução que a Câmara tenta agora anular depois que o STF, julgando ações movidas pelo PSDB, DEM e PPS, decidiu que o mandato eletivo pertence aos partidos, não aos políticos. A despeito disso, Regis Oliveira esgrime a tese segundo a qual “o parlamentar deve legislar, o juiz decidir e o administrador executar”.

O decreto legislativo, instrumento escolhido pelo deputado para investir contra as decisões da Justiça, dispensa a sanção do presidente da República. É prerrogativa exclusiva do Congresso. Está previsto no inciso V do artigo 49 da Constituição. Há, porém, um detalhe. Diz o tal inciso V que o Congresso tem poderes para sustar apenas “atos normativos do Poder Executivo”. Nada diz a respeito dos atos do Judiciário.

O próprio Regis Oliveira pergunta: “Seria esta a única hipótese de sustação de atos normativos e apenas em relação aos atos expedidos pelo Poder Executivo?”. Ele mesmo tenta elucidar a dúvida: “A resposta a tal questão há de estar em sintonia com o todo constitucional. Sabidamente, a Constituição não se interpreta pela análise isolada de um de seus dispositivos, mas leva-se em conta o todo do ordenamento jurídico por ela instituído”.

“Neste passo”, prossegue o autor da proposta, “a Constituição, ao estabelecer que cabe ao Legislativo ‘zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa de outros poderes’, está a prever três hipóteses: a) zela por sua competência indo ao Poder Judiciário; b) zela pela edição de lei sobre o assunto e c) zela pela sustação dos atos”. O relator Itagiba acatou-lhe os argumentos.

Assim, ou os colegas de Regis e Itagiba dão cabo de mais esta tentativa de derrubar a disciplina que o Judiciário impôs à barafunda partidária ou a Câmara dará o dito por não dito. Se isso vier a acontecer, o novo decreto será, evidentemente, questionado no STF. E a celeuma, que já não é pequena, vai aumentar.